Afinal, impeachment é golpe?
Texto de: Matheus George G. da Nóbrega
Em 1993, o primeiro
Presidente da República democraticamente eleito após a ditadura militar,
Fernando Collor de Mello, teve seu processo de impedimento confirmado pelo
Senado Federal. O então Presidente havia sido eleito com a promessa de varrer a
corrupção e restabelecer a economia do país, mas perdeu popularidade logo após
confiscar o saldo das poupanças bancárias da população brasileira. O processo
de impeachment veio à tona quando seu irmão, Pedro Collor, lhe acusou de ter
recebido empréstimos fraudulentos para financiar a campanha de 1989. Outras
denúncias se seguiram, como as reformas na sua casa supostamente financiadas
por contas fantasmas e a suspeita de que seu carro Fiat Elba seria proveniente
de recursos escusos. Milhares de manifestantes, os chamados “cara- pintadas”,
foram às ruas com as cores da bandeira nacional em forma de protesto.
Em meio aos acontecimentos, Collor se dizia vítima do "sindicato do golpe" e contava com o apoio de advogados que diziam não restar configurado crime de responsabilidade contra ele. Mesmo assim, o processo seguiu sem maiores complicações e culminou na sua condenação. Mais de vinte anos depois, a história se repete.
Em meio aos acontecimentos, Collor se dizia vítima do "sindicato do golpe" e contava com o apoio de advogados que diziam não restar configurado crime de responsabilidade contra ele. Mesmo assim, o processo seguiu sem maiores complicações e culminou na sua condenação. Mais de vinte anos depois, a história se repete.
Assim como Collor, a atual Presidente da República Dilma Rousseff é acusada de ter praticado crimes de responsabilidade, que são infrações político- administrativas cometidas por agentes públicos. No Congresso Nacional, podem ser alvos desse procedimento além do Presidente e Vice-Presidente da República, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Ministros de Estado, o Procurador-Geral da República e Conselheiros do CNJ e do CNMP. As consequências de uma condenação, no entanto, não são aquelas atribuídas aos processos criminais, mas tão somente a perda do cargo público e a suspensão dos direitos políticos por tempo determinado. Isso não impede, todavia, uma posterior persecução penal, se houver suspeitas da prática de um crime comum. As duas instâncias são independentes. Fernando Collor, por exemplo, foi absolvido diversas vezes em processos penais no Supremo Tribunal Federal, o que não torna seu processo de impeachment menos legítimo. Enquanto os crimes comuns são tipificados no código penal e nas legislações especiais, o crime de responsabilidade do Presidente da República é previsto pela Constituição Federal e regulado pela lei 1079/50.
Desde 2015, a Câmara dos Deputados vem recebendo denúncias político-administrativas contra Dilma Rousseff, que podem ser apresentadas por qualquer cidadão. Alguns pedidos foram arquivados e outros nem sequer analisados até o presente momento, como o impetrado pela Ordem dos Advogados do Brasil. A denúncia que foi aceita e está sob análise, assinada por renomados juristas brasileiros, tem como principal fundamento a prática das chamadas pedaladas fiscais, além da abertura de créditos suplementares sem autorização do Congresso Nacional. A AGU admite a prática dos atos elencados, mas nega que eles sejam tipificados pela lei 1079/50 e lembra que outros ex-presidentes também cometeram atos semelhantes. O governo acusa a oposição e a mídia de “golpistas” e de perseguição a um governo legitimamente eleito. Surge a questão: O impeachment, da forma que está sendo desenvolvido, é golpe?
É preciso esclarecer que o impedimento do chefe do Executivo Federal, apesar de ser um processo jurídico, é também dotado de uma forte conotação política. Tanto é que seu legitimado constitucional é um órgão do Poder Legislativo, ao qual se atribui um papel atípico de julgamento. É inescusável que outros ex-presidentes e governadores tenham cometido infrações orçamentárias semelhantes, embora em menor proporção. Todavia, o motivo pelo qual estes não sofreram um processo de impeachment é simples e se relaciona com as regras do jogo: o desenho institucional brasileiro atribui ao Presidente da Câmara dos Deputados um papel exclusivo de abertura do procedimento, cuja recusa só pode ser suplantada por recurso da maioria absoluta da referida casa legislativa. Os Presidentes da República anteriores possuíam aliados na Presidência da Câmara, como é natural em um governo de coalizão, o que dificultava o andamento de eventuais denúncias impetradas. Além disso, apesar dos fundamentos para o atual processo de impeachment serem orçamentários, grande parte da população o apoia por razões diversas, como os sucessivos escândalos de corrupção, a queda acentuada da economia e a falta de diálogo da chefe de governo com os que não a apoiam. Há também vários processos de cassação de mandato em curso no Tribunal Superior Eleitoral, com graves indícios de fraude eleitoral e abuso de poder econômico na campanha.
Por outro lado, um fator diferencial em relação ao impeachment de Collor diz respeito ao apoio de partidos. Dilma não só tem o apoio do Partido dos Trabalhadores, como também de outras alianças partidárias construídas ao longo do governo petista. Há também a possibilidade do suporte de alguns dos denominados “partidos de aluguel”. Collor, por sua vez, foi eleito sem um substrato partidário forte e enfrentou praticamente a totalidade do processo de impeachment sem o apoio de nenhum partido. Além disso, apesar da popularidade baixa sem precedentes, o governo atual conta com o apoio de grupos com grande capacidade de organização e militância, como os movimentos sociais e os eleitores filiados ao PT, dotados de uma fidelidade ímpar na incipiente democracia partidária brasileira. Isso se deve à inegável contribuição dos governos Lula e Dilma na área social (agora prejudicada pela crescente deterioração da economia), bem como pela distribuição de benefícios a alguns grupos específicos aliada ao enorme tempo de permanência no poder. Com o apoio incondicional de certos setores, é mais fácil difundir a ideia do golpe, a despeito do Partido dos Trabalhadores ter apresentado e apoiado 50 pedidos de impeachment quando era oposição.
Outra questão que fomenta o discurso do “golpe” é o fato de não haver nenhuma acusação criminal diretamente contra a Presidente da República, o que pode parecer injusto para seus apoiadores, na medida em que há centenas de parlamentares em exercício respondendo a processos criminais. A responsabilidade fiscal é um valor importantíssimo para um governo, pois influencia a vida dos seus cidadãos e a capacidade econômica do país, modificando sonhos e projetos. Porém, não seria mais grave a prática de um crime comum? Do ponto de vista político- institucional, não. Como vimos, as figuras do processo penal e político-administrativo não se relacionam. Além disso, o chefe máximo de uma nação tem, por expressa imposição constitucional, uma responsabilidade maior com os seus atos. Prova disso é que deve necessariamente ser afastado do cargo caso alguma denúncia contra si por crime comum ou de responsabilidade seja aberta. Os parlamentares, por sua vez, não se submetem ao impeachment. Nada impede, todavia, caso haja vontade política majoritária, que um congressista seja submetido a cassação dos seus mandatos pelo Conselho de Ética da respectiva casa, em razão da quebra de decoro parlamentar e inclusive por atos anteriores ao mandato. Tal procedimento pode levar a perda do cargo e a inabilitação para exercer funções públicas por oito anos, as mesmas consequências do impeachment.
Um golpe de estado pode ser conceituado como uma ruptura institucional repentina que contrarie a normalidade da lei e da ordem. O último ocorrido no Brasil foi em 1964, quando as forças armadas depuseram ilegitimamente o presidente João Goulart. Esta modificação do governo instituído ou do regime político representa uma ruptura drástica da ordem constitucional. Cria-se, como ocorreu no Brasil na ditadura militar, uma nova ordem jurídica. A edição de atos institucionais com poderes para cassação de direitos políticos são manifestações dessa quebra da normalidade jurídica. Muito diferente seria uma eventual perda de cargo da Presidente da República por meio do impeachment. Não haveria alteração no quadro normativo, já que o procedimento é previsto no próprio ordenamento jurídico pátrio. De forma parecida, o pós- Collor se delineou em um quadro de normalidade institucional e não alterou as regras vigentes.Temos ainda, mais do que há 23 anos atrás, instituições fortalecidas como o Ministério Público e os Tribunais de Contas, além de uma divisão de poderes harmônica e bem definida. Nesse sentido, não há como se falar em golpe do Poder Legislativo no exercício de suas funções constitucionais. De igual forma, o Poder Executivo dispõe de diversas formas de defesa, como a possibilidade de recursos ao Supremo Tribunal Federal em caso de ilegalidades e de negociação de cargos com os parlamentares.
Por fim, é sabido que a Lei do
Impeachment prevê quase 60 hipóteses de incidência de crimes de
responsabilidade e muitas delas remetem de forma genérica a outras legislações,
o que permite uma série de interpretações. Todavia, como uma nova lei não foi
ainda editada, a lei em vigor deve ser utilizada em nome da segurança jurídica,
até como garantia de tratamento igual ao do impeachment de Collor. O Supremo Tribunal, todavia, instituiu uma
série de garantias adicionais ao procedimento para amplificar a ampla defesa, o
contraditório e a igualdade de representação, bem como para adequar o sistema
processual da Lei 1079/50 ao aparato jurídico atual, legitimando assim
novamente o processo.
A alegação de que o processo de impeachment
atual constitui golpe parece se basear na premissa de que a Presidente da
República não cometeu crime de responsabilidade. Porém, é o próprio processo
que determinará se houve ou não essa infração político-administrativa (isto é,
se o atraso dos pagamentos aos bancos públicos e a abertura de créditos
suplementares sem a autorização do Congresso são ou não operações vedadas pela
Lei de Responsabilidade Fiscal e pela Lei do Impeachment). Assim, não nos cabe realizar a subsunção dos
fatos concretos aos crimes de responsabilidade tipificados, a não ser como mero
exercício da liberdade de expressão. Essa é uma atribuição exclusiva e legítima
do Congresso Nacional, representante do povo brasileiro, que não pode nem mesmo
ser levada ao Supremo Tribunal Federal para discussão de mérito. Desmascara-
se, com todos os argumentos supracitados, a falácia do golpe.
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